Precisamos voltar a escrever à mão

Escrever a mão para combater o vício em celular e tecnologia

Uma sala de aula hoje está assim: o professor escreve durante vários minutos no quadro, o aluno se levanta, pega o celular e em poucos segundos faz uma foto do que está na lousa. Durante a explicação, não é raro perceber um ou dois estudantes com fones no ouvido. Eles olham com cara de paisagem para frente e fica a dúvida se têm atenção multifocal para prestar atenção em tantas coisas. Na hora de resolver uma atividade avaliativa, a solução vem do “cérebro” de uma inteligência artificial que, mesmo cometendo erros nas respostas, apresenta cada uma delas como se fosse um especialista no assunto.

Em outra ponta do problema, adultos que estão no mercado de trabalho, muitas vezes, sentem-se frustrados quando percebem que não conseguem avançar em sua atividade diária como os amigos das mídias sociais que postam o quanto correram no último treino, o número de clientes atendidos, como está o local de trabalho e, depois de tudo, como vão aproveitar o momento de descanso.

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Os cenários apresentados aqui se expandiram devido ao uso do smartphone. De acordo com o Comitê Gestor da Internet (CGI), no Brasil, 92 milhões de pessoas acessam a internet via celular. A totalização desse número mostra como o serviço tem crescido ao longo dos anos e indica que as transformações podem continuar caso as dificuldades de acesso sejam solucionadas.

O celular se converteu, nos últimos tempos, em um novo cigarro. É difícil ficar sem o aparelho. Se no trânsito, você parar alguns segundos enquanto o sinal abre, a primeira reação é enfiar a mão no bolso e ver a tela. Esquecê-lo em casa é quase um sacrilégio. Ficar sem bateria é uma tortura física. Cerca de 50% da população mundial tem um smartphone. Em um dia comum, ele é verificado em média 221 vezes. Mas o que o torna tão viciante é o design dos aplicativos. Não se trata apenas de entregar funcionalidade ao usuário, mas roubar a atenção1.

A palavra vício parece forte. Ela é empregada para problemas graves como álcool, cigarros e drogas. Como poderia ser utilizada então para algo que parece banal como usar um aplicativo de mídia social no? As plataformas digitais operam como um caça-níquel. A lógica é criar expectativa e entregar pequenas ou grandes recompensas. Imagine o seguinte: você posta uma foto em seu perfil. Ela tem 30 curtidas em alguns minutos. No dia seguinte, ao colocar outra imagem, a sua frequência de acesso ao aparelho aumenta porque você quer saber como foi o desempenho. Mesmo se não postar nada próprio, o usuário rola o feed infinito para ver as atualizações das outras pessoas e encontrar uma imagem para se engajar.

A Fundação Oswaldo Cruz alerta que as telas dos computadores, celulares e jogos eletrônicos invadiram a infância: “com isso, as brincadeiras ao ar livre e a magia do brincar, além do contato com outras crianças, acabam ficando prejudicados. Segundo dados da pesquisa TIC KIDS ONLINE BRASIL 2019 (Pesquisa sobre o Uso da Internet por Crianças e Adolescentes no Brasil), em 2019, 89% da população entre 9 e 17 anos era usuária de Internet, o que corresponde a cerca de 24 milhões de crianças e adolescentes, dos quais, 95% tinham no telefone celular o dispositivo de acesso à rede”2.

Já há um entendimento de que existe um efeito negativo na formação do cérebro e estruturas neuronais de crianças e adolescentes que usam smartphones com frequência. Até os 25 anos, a maturação cerebral não está plenamente realizada. Os estímulos rápidos, como os reels do Instagram ou o feed do TikTok, liberam dopamina no cérebro do jovem3.

A dopamina é um hormônio que gera a sensação de prazer. Os estímulos físicos como uma boa comida, o resultado de uma atividade física ou a felicidade em estar em um grupo de amigos disparam esse neurotransmissor e o cerébro sente satisfação. Essa é maneira natural. Com o conteúdo curto e com o apelo de imagens atrativas das mídias sociais, o processo de liberação de dopamina no organismo é acelerado de modo artificial. Um dos efeito é que o usuário sempre vai buscar o celular e as mídias sociais para sentir aquela sensação de prazer. É isso que cria dificuldade para o usuário se distanciar do celular.

Um levantamento do Instituto de Pesquisa de Ontário descobriu que crianças e adolescentes que seguem a recomendação dos médicos de usar menos de duas horas de tela por dia, praticar uma hora de atividade física e dormir pelo menos oito horas têm o desenvolvimento cognitivo superior daquelas pessoas que não seguem essas regras4.

Como vencer o vício em smartphone?

A combinação celular e internet facilitou a vida em muitos aspectos. Hoje, por exemplo, ir ao banco presencialmente é apenas em caso de uma necessidade bem específica. Caso contrário, desde a abertura de uma conta, pagamentos e investimentos podem ser realizados por meio digital. Por outro lado, o uso pouco racional traz cansaço mental. É aquela situação de ao acordar, pegar o aparelho, ver o Twitter, e quando percebe já se passou uma hora. Ao sair da cama, o corpo parece que não está descansado e a mente parece cheia, mesmo se ainda for sete horas da manhã.

A reportagem Por que desenhar é o melhor detox digital, publicada pela BBC, discute como a dedicação ao chamado desenho consciente pode ajudar a lidar com dores, angústias e o sofrimento mental. No texto, a jornalista Beverley D’Silva mostra o caso de pessoas que graças aos traços na folha de papel conseguiram lidar com traumas e perdas. “Pegar um lápis ou carvão e fazer traços de forma consciente nos conecta às nossas habilidades tácteis, ao sentido do tato, e oferece um descanso do interminável esgotamento digital. E isso é importante para a saúde mental”, afirma o texto5.

O ato de usar lápis e papel restitui a atenção da pessoa ao momento presente. É o que os praticantes de mindfulness chamam de atenção plena. A pessoa não está em outro lugar que não seja ali. Não há preocupação com a notificação de um aplicativo ou se chegou um novo email.

Particularmente, sou defensor da ideia do desenho. Pegar um objeto e tentar representá-lo. O receio de muitas pessoas é a qualidade dessa imagem. Ao falar em desenhar parece que temos que fazer uma Monalisa todos os dias. A verdade é que um pequeno caderno com alguns traços já é suficiente. Mas se criar imagens não te agrada, então escreva. Pode ser um diário ou um caderno com pequenas lembranças.

Nas tarefas do dia, outras medidas podem ser adotadas para mitigar esses efeitos da tecnologia. Façamos a mão o que pode ser realizado assim. Nem tudo precisa estar na agenda do Google. Se você se dá bem com agenda de papel, esta é uma solução viável. Aposentar aplicativos de produtividade não é ruim. Substitua-os por blocos de papel. Para quem está em sala de aula, a pesquisa via internet é indispensável, mas o caderno físico colabora para manter o estado de presença ativo.

REFERÊNCIAS

1 – GARATONI, B.; SKARKZ, E. Smartphone – o novo cigarro. Disponível em: <https://super.abril.com.br/especiais/smartphone-o-novo-cigarro>. Acesso em: 4 jan. 2024.

2 – AMARANTE, S. O uso das telas e o desenvolvimento infantil. Disponível em: <https://www.iff.fiocruz.br/index.php?view=article&id=35:uso-das-telas&catid=8>. Acesso em: 30 set. 2022.

3 – PAGNO, M. Crianças e adolescentes no celular: uso exagerado afeta o cérebro e a concentração; veja o que fazer. Disponível em: <https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/02/14/criancas-e-adolescentes-no-celular-uso-exagerado-afeta-o-cerebro-e-a-concentracao-veja-o-que-fazer.ghtml>. Acesso em: 4 jan. 2024.

4 – WALSH, J. J. et al. Associations between 24 hour movement behaviours and global cognition in US children: a cross-sectional observational study. The Lancet Child & Adolescent Health, v. 2, n. 11, p. 783–791, nov. 2018.

5 – D´SILVA, B. Por que desenhar é o melhor detox digital. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/c14yr9lgw1qo>. Acesso em: 4 jan. 2024.


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